A nova Lei de Falências, em vigor desde 24 de janeiro, traz benefícios importantes para empresas em recuperação judicial, como a ampliação de financiamento, o parcelamento e o desconto para pagamento de dívidas tributárias.
Entre os pontos principais da Lei 14.112/2020, em seu artigo 142, está a atribuição de algumas competências da AGC (Assembleia Geral de Credores), que não eram contempladas na legislação antiga. A chance de os credores tomarem a iniciativa de propor um plano de recuperação e submeter à aprovação também ganha destaque.
Não foi dessa vez que se deu poder aos comitês de credores para aprovar ou não a contratação das chamadas “asset tracings” — empresas encarregadas de buscar bens da massa falida no exterior. A incumbência continua sendo do administrador judicial ou do juiz, a quem hoje cabe escolher a empresa que trabalhará no rastreamento desses bens.
A regra possibilita que intermediários, cujo papel é o de zelar pela recuperação da empresa e/ou reembolso de credores, acabem recebendo mais que os destinatários de direito. Há casos em investigação de “caçadores de recompensa” que recebem de 30% a 70% de valores. E há casos de simulação de “valores desviados” para que o intermediário possa faturar sua comissão — que é dividida com o administrador judicial.
A atuação dos “asset tracers” sempre foi questionada em alguns dos principais processos falimentares do Brasil. Banco Cruzeiro do Sul, Banco Santos, Banco Rural, Petroforte e Fazendas Reunidas Boi Gordo são alguns exemplos. A Justiça de Cayman, depois de autorizar investidas contra ativos supostamente desviados da Petroforte e do Banco Rural, manifestou-se arrependida ao tomar conhecimento dos métodos e critérios de um administrador judicial em conluio uma empresa de recuperação de ativos — a OAR Brasil Consultoria.
“Lamentavelmente, agora também levado em consideração e como também é agora aparente, as alegações (…) perante este Tribunal de que havia um risco de dilapidação de ativos como base também para as decisões controversas e a rápida divulgação inaudita altera parte, eram falsas”, disse o juiz Anthony Smellie, da Divisão de Serviços Financeiros da Grande Corte de Justiça das Ilhas Cayman, em decisão de 16 de maio de 2019. “Se este Tribunal não tivesse sido induzido a erro em relação à necessidade de sigilo e urgência, novamente é altamente provável que este não teria procedido inteiramente inaudita altera parte.”
De acordo com o professor Pedro Freitas Teixeira, que auxiliou o deputado federal Hugo Leal (PSD–RJ) na construção do texto do PL que deu origem à nova lei, em alguns casos, os efeitos da falência vinham sendo aplicados a sociedades com responsabilidade limitada, sem que houvesse qualquer prévio contraditório. “O mecanismo dos ‘asset tracers’ é importantíssimo principalmente nas falências, mas a sua atuação deve ser minimamente regulamentada para que não haja abusos”, diz Freitas.
O artigo 82-A da nova lei tem efeito saneador e veda a extensão dos efeitos da falência. Por outro lado, permite a desconsideração da personalidade jurídica, desde que com a devida instauração do IDJ — incidente de desconsideração da personalidade jurídica, e consequentemente, se constatadas as práticas eventualmente fraudulentas, a busca de ativos em nome de outras sociedades.
À parte todos os questionamentos corriqueiros de um processo de falência, houve e ainda há muitas ações por parte de credores questionando a atuação de promotores, administradores judiciais e até juízes, especialmente sobre a lisura da contratação das “asset tracings” e seus ganhos.
Os pleitos vão desde os que questionam contratos sem o conhecimento dos credores, no quais são estabelecidos ganhos exorbitantes para as empresas que rastreiam bens das massas falidas no exterior, até pedidos de retirada do segredo de Justiça, que geralmente é feito pela promotoria, sob o argumento de que os bens rastreados possam ser movimentados e escondidos em outro local.
“Muitos credores questionam não só o sigilo, que os deixam às cegas, mas também a incidência da mesma indicação de empresa para rastrear os bens — a OAR Brasil Consultoria”, diz um advogado envolvido em um processo de falência.
A OAR, que tem em seu quadro societário os advogados Herinque Forssel e Rodrigo Kaysserlian, é a mesma que atua nas grandes falências citadas e figura nas principais ações que questionam os honorários desse tipo de empresa.
Em decisão do ano passado, no processo da massa falida da Boi Gordo, a juíza Renata Mota Maciel Madeira Dezem, da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do TJ-SP, indeferiu o pedido do administrador judicial (AJ), Gustavo Sauer, que indicava o escritório Mubarak Advogados para cumprir a sentença de captura de bens da empresa Bom Jardim Empreendimentos Rurais, no valor de R$ 20 bilhões.
Nos termos propostos na ação, o AJ pedia honorários de 1%, o equivalente, em cenários otimistas de localização de ativos, a R$ 200 milhões. “Imagino que o síndico não tenha feito esta conta, porque se tivesse, talvez tomasse maior cautela ao submeter ao juízo uma proposta nestes termos e sem maior fundamentação. Aqui, o norte é o interesse da massa falida, em especial do numeroso grupo de credores que aguardam o recebimento de seus créditos”, diz a juíza na decisão.
De acordo com os contratos a que a reportagem teve acesso, a taxa cobrada por essas empresas de recuperação de ativos chega a comissões de 30% do valor recuperado. Por lei, o AJ, que é quem contrata essa prestação de serviço no exterior, só pode receber 5% de processo falimentar. “Um excelente negócio para essas empresas, mas um péssimo arranjo para os credores, que nada podem fazer. Já que, quando contestadas na Justiça, invariavelmente as ‘asset tracings’ são elogiadas pelo juiz pelo bom desempenho. Muitas vezes sobre ativos que nem foram localizados por elas”, comenta um advogado que atua no setor.
A descrição é semelhante à que faz o juiz Anthony Smellie, de Cayman: “OAR Consultantes Consultoria Ltda, empresa de investigação privada contratada (…) para auxiliar em sua investigação no Brasil e no exterior, com o objetivo de encontrar e ‘repatriar’ (…) quaisquer bens pertencentes a qualquer um incluso em uma longa lista de empresas do Grupo Rural e Petroforte. A OAR, pela cláusula 5 do seu contrato (…), deveria ser expressamente remunerada apenas pela contingência das recuperações, a 20% do valor e a 30% do valor, dependendo se simplesmente produzisse provas que permitissem o confisco de bens conhecidos ou se esta realmente descobriu e ajudou na recuperação de bens desconhecidos.”
Segundo o professor Pedro Freitas Teixeira, o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, previsto na nova lei, será o procedimento prévio e obrigatório a ser instaurado antes de qualquer medida sobre bens de terceiros. Esse incidente é processo em apartado em que as partes envolvidas teriam a oportunidade de oferecer suas defesas acerca da suspeita de desvio de bens ou prática de qualquer ato fraudulento. “Hoje em dia, a partir do resultado das buscas de bens realizadas, o juiz pode ser provocado pelo AJ e autorizar, sem qualquer prévio contraditório, a extensão dos efeitos da falência sobre bens de terceiros (sociedades do grupo, sócios, administradores ou até sociedades que são do mesmo grupo, mas que podem estar envolvidas)”, explica Teixeira.
No processo em que a falência da Petroforte arrastou consigo outras empresas, a Justiça de Cayman criticou a forma como foi conduzida a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar supostos sócios no caso, consignando que as partes envolvidas — notadamente o administrador judicial nomeado na falência Petroforte e a empresa de “asset tracings” por ele contratada, a OAR — atuaram sob conflito de interesses e fizeram tudo a seu alcance para induzir o juízo em erro a fim de obter vantagem indevida às custas de terceiros. Isso baseado nos altos percentuais que tanto o administrador judicial como a empresa investigadora ganhariam sobre os valores revertidos à massa falida em razão do acolhimento das alegações de fraude.
Por isso, a nova lei contribuirá para um ponto da falência muito questionado pelas partes: a desconsideração da personalidade jurídica para a extensão dos efeitos da falência a sócios de sociedade de responsabilidade limitada — como são a grande maioria das empresas brasileiras (as conhecidas Ltdas. e as S/As). O artigo 82-A na Lei de Falências dispõe que “é vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica”.
Já o artigo 81 é claro em prever que apenas nas sociedades de responsabilidade ilimitada — por exemplo as sociedades em nome coletivo e as sociedades em comandita por ações — é que os sócios poderiam ser atingidos pela decretação da falência.
Insolvência transnacional
A advogada Samantha Mendes Longo, sócia de Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados, destaca que a nova lei traz, pela primeira vez, “positivadas regras sobre a insolvência transnacional, que merece cada vez mais atenção diante da globalização”.
“Tem sido cada vez mais frequente o pedido de recuperação judicial por grupos econômicos transnacionais e coube, até hoje, à jurisprudência tratar do tema, já que não havia qualquer previsão na Lei 11.101/05”, diz Samantha.
Outra importante mudança, segundo a advogada, e que está em total sintonia com a valorização dos métodos autocompositivos, é a previsão do uso da mediação e conciliação, não apenas durante o processo de recuperação, mas também de forma pré-processual, tentando evitar a demanda e fomentando devedor e credores a serem mais protagonistas na reestruturação — como aliás, já previa a Recomendação 58/2019 do Conselho nacional de Justiça.
“O estímulo ao diálogo igualmente se verifica com a redução do quórum de aprovação do plano de recuperação extrajudicial, modelo ainda pouco utilizado e que merece ser amplamente desenvolvido”, defende.
Samantha também elogia a lei por trazer a constatação prévia, que é a possibilidade de o juiz nomear profissional de sua confiança para atestar as reais condições de funcionamento e a regularidade da documentação apresentada pelo devedor. A constatação prévia já era determinada por vários magistrados e sugerida pelo Conselho Nacional de Justiça na Recomendação 57/2019
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 11 de fevereiro de 2021
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