Brasília – Na sequência da série “Grandes Temas”, onde o Conselho Federal da OAB traz uma retrospectiva dos debates realizados durante a XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira – realizada em novembro de 2017, em São Paulo – é hora de relembrar o trigésimo primeiro painel do maior evento jurídico do mundo. Leia abaixo:
A igualdade e as ações afirmativas foram os temas discutidos no Painel 31 da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, realizado na manhã desta quarta-feira, (29), em São Paulo. O painel foi presidido por Rodolpho Cesar Maia de Morais, acompanhado pelo relator Bernardino Dias de Souza Cruz Neto e pela secretária Reti Jane Popelier, e contou com a presença de diversos especialistas no assunto.
O debate contou com a presença do presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia, que aproveitou a ocasião para firmar uma parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares e assinar uma carta na qual a OAB se compromete a promover o acesso de advogadas e advogados negros aos escritórios de advocacia. “Nós, advogados, somos agentes de transformação social, temos um compromisso com a sociedade brasileira”, disse ele. “É uma alegria muito grande, nessa Conferência, estarmos assinando essa carta. Vamos buscar que todas as Seccionais firmem o mesmo acordo”. A conselheira federal Adriana Coutinho, presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade, acompanhou a assinatura.
As atividades do painel começaram com uma palestra sobre liberdade religiosa, proferida pela presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP, Damaris Moura Kuo, que ressaltou a importância do evento em um contexto onde ocorrem várias violações do direito de crença. “Eu considero histórica essa manhã para a liberdade religiosa porque, pela primeira vez na história, esse tema é debatido em uma Conferência Nacional da Advocacia, principalmente pelos vários casos de intolerância religiosa que enfrentamos”, saudou.
Kuo citou que, nos últimos anos, houve um aumento de mais de 60% de casos de intolerância religiosa no Brasil, sendo que um terço dos episódios envolve religiões de matriz africana. “Os casos são subnotificados e não refletem toda a realidade. Veja, uma pedrada em uma criança, em 2015 (se referindo à agressão a uma menina de 11, membro de uma família candomblecista do Rio de Janeiro), atingiu toda a sociedade brasileira. Trouxe um grande debate, porém, ainda hoje, temos muitas casas depredadas, alunos reprovados, trabalhadores demitidos, vidas ceifadas e violentadas pela intolerância religiosa”, lamentou.
“A intolerância religiosa não é algo novo no Brasil”, analisou a palestrante. “Porém, foi somente com um decreto, promovido por Rui Barbosa – e que marcou o Brasil – que separou-se Estado e Igreja, permitindo liberdade de culto e proibindo a catequese nas escolas. Instaurou-se, portanto, o laicismo no Brasil”, completou. Segundo Kuo, a OAB tem realizado diversas ações para garantir a liberdade religiosa.
“Há 11 anos, a OAB-SP, sensível ao tema, criou a primeira Comissão de Liberdade Religiosa e avançou com altivez no tema, oferecendo aos cidadãos brasileiros seu trabalho, sem arroubos acadêmicos, mas com a intencionalidade de conhecer os problemas, investigar e propor soluções, o que atraiu pessoas do mundo inteiro”. Após a palestra, foi proposto que a OAB apoie a recém-criada Frente Parlamentar que apregoa a liberdade religiosa, emprestando seus 11 anos de atividades para somar esforços contra a intolerância, além de promover debates sobre ensino religiosa e liberdade religiosa no trabalho.
Na palestra “Cotas, Reparação da Escravidão e o Papel da Advocacia”, Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, lembrou da instalação das pioneiras políticas de cotas no Brasil, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e na Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
“Passamos 15 anos julgando as cotas inconstitucionais e, depois de um tempo, a OAB deliberou a favor das cotas. Isso foi muito importante, não só para o julgamento, mas, também, porque havia um receio de que o Conselho Federal se posicionasse contra as medidas de reparação, o que, felizmente, não ocorreu. O Estado brasileiro segue cometendo crime de racismo e o papel da advocacia é estar presente nessa demanda”, alertou. Segundo o palestrante, durante muito tempo discutiu-se a inconstitucionalidade, porém foi aceita a constitucionalidade das cotas e, portanto, juristas não podem colocar-se contra essa política, devido ao efeito vinculante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). .
“É importante, também, lembrar que, nesses últimos tempos, discutiu-se a conta das políticas de reparação, já que política de cotas é algo pequeno quando comparado ao holocausto de 400 anos vivido pela população negra”, destacou Adami. “Além disso, o Estado nunca se desculpou. Por isso, propomos a criação da Comissão da Verdade da Escravidão, já que a história da população afro-brasileira tem sido afastada do Brasil”, explicou.
Após a palestra, Adami propôs – e foi aprovado – que as faculdades de Direito e o Exame da Ordem incluam aulas de história e cultura africana e indígena nos currículos e provas, respectivamente e, também, que o Conselho Federal da entidade, junto com as Seccionais, instaurem cotas para negros, pardos e indígenas na composição das diretorias.
Carlos Moura, presidente da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, palestrou sobre igualdade racial, apontando caminhos para incorporar à sociedade os indivíduos que estão fora do processo de desenvolvimento do país em função do racismo. “É preciso encontrar mecanismos para que toda a sociedade possa trabalhar junto para superar a desigualdade. Precisamos aceitar o diferente, o outro como ser humano, na perspectiva de reconhecer os valores intrínsecos de cada pessoa. Afinal, há sempre uma complacência: ‘É isso mesmo’, ‘Deixemos como está’, ‘Podemos criar problemas e dificuldades’.”, argumentou.
Segundo Moura, a advocacia tem papel fundamental nessa luta. “Nós, como seres humanos e operadores do Direito, devemos agir. O único modo de corrigir desigualdades é colocar o peso da lei em um mercado desequilibrado. Falta a percepção de que não se pode não falar em Constituição Federal sem falar, acima de tudo, em igualdade”, ponderou. Após a palestra, foi proposta e aprovada que a OAB faça uma campanha junto com as secretarias municipais de educação para promover a formação de professores que lecionem aulas de História e Cultura Africana e Indígena.
Justiça indígena
Continuando as atividades, Márcio Rosa da Silva, promotor de Justiça, abordou os diálogos com sistemas de Justiça indígenas. “Moro em um estado [Roraima] em que 41% do território é composto por terras demarcadas e 10% da população se declara indígena. No território nacional, temos 13,8% do território nacional composto por terras indígenas, o que torna esse assunto bastante relevante.”
Para o palestrante, a Legislação Brasileira garante a coexistência da Justiça do Estado brasileiro e das nações indígenas. “Se queremos uma Justiça mais democrática e efetiva, o sistema jurídico dos povos indígenas tem que ser reconhecido. Há uma celeuma, mas a Constituição já admite isso, ao reconhecer a organização social das comunidades indígenas. Ou seja, também aceita sua Justiça. Devemos avançar para a coexistência dos sistemas de Justiça. Os povos indígenas têm o direito à autodeterminação e um princípio que devemos defender e respeitar é seu sistema de resolver conflitos”, lembrou. Após a palestra, foi proposta e aprovada que a OAB proponha uma atualização da Legislação Brasileira que reflita a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos dos Povos Indígenas.
Na palestra “Proteção dos Conhecimentos Tradicionais e do Patrimônio Genético em Terras Indígenas”, o advogado Edson de Oliveira, destacou que 70% dos medicamentos produzidos no mundo têm origem em conhecimentos tradicionais. “Em produtos desenvolvidos pela indústria farmacêutica com base em ‘pesquisa e erro’, demora-se 12 anos para o medicamento chegar às prateleiras. Quando se utiliza os conhecimentos tradicionais, esse tempo é de somente seis anos”, comparou.
A última palestra, “Imigração e Refugiados”, foi proferida pelo presidente da Confederação Israelita do Brasil, Fernando Lottenberg, que lembrou a necessidade de encarar o processo migratório como algo intrínseco da humanidade. “Um exemplo disso é a Europa que, hoje, enfrenta uma grande crise com as milhares de pessoas que chegam às suas portas. Porém, em muitas outras ocasiões, os imigrantes era o próprio povo europeu”, relembrou.
Lottenberg também comentou os benefícios da nova Lei de Migração, que abandona a visão de que o imigrante é uma ameaça à segurança nacional, tratando-o, agora, sob a ótica dos Direitos Humanos. “É resultado de mais de 30 anos de estudos e projetos e estabelece direitos e deveres dos imigrantes, bem como políticas públicas, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, que criminalizava o imigrante e negava direitos, como trabalho, participar de sindicatos etc.
Já essa nova lei, aprovada em um momento de aumento da xenofobia diante de imigrantes e refugiados, traz, entre as inovações, a igualdade de oportunidades entre brasileiros e imigrantes e os vistos humanitários que podem ser concedidas em situações de risco ou vulnerabilidade.